24.8.12

O que pode acontecer com seus olhos depois de alguns anos de bons serviços prestados


Ilustração de André François

Depois de 17 anos de bons serviços profissionais prestados, meus olhos começaram a me deixar na mão (conto apenas 17 anos porque formei-me em Design em 1995).

Foi coisa de uns meses pra cá que dei-me conta de que começava a fazer algumas manobras para poder ver direito com meus óculos. Para ver de perto, por exemplo, frequentemente deixava a armação estrategicamente posicionada na extremidade do meu nariz para que meus olhos pudessem mirar pelo lado de fora (!) das lentes.

Das duas armações que tinha, uma se perdeu e a outra estava perneta (como fui perder somente uma perna dos óculos não sei explicar...). Então, para ilustrar meus últimos dois livros precisei trabalhar com uma lupa a um palmo do nariz por várias semanasfeito um Sherlock Holmes. Neste processo ganhei de brinde uma bela enxaqueca.

Antes de encomendar óculos novos decidi ir ao oftalmologista para conferir se algo havia piorado. Foi uma visita de rotina onde constatei que sim, o problema de vista havia evoluído  (e este é um caso típico em que a evolução não é necessariamente uma coisa positiva).

Diagnosticada a vista cansada ("comum a partir dos quarenta anos", disse-me o doutor), recebi a receita médica especificando os dados técnicos para a confecção de uma lente multifocal Zeiss, daquelas "para longe e para perto".

Então, hoje fui lá na ótica, emocionado, mandar fazer meus primeiros óculos multifocais. Emocionado porque são nestas horas fatídicas que ouço mais nitidamente as trombetas do ocaso ecoar ao longe ( e olha que ainda não fiz exame de próstata. Aguardo os avanços da medicina nesta área).

Ao longo da vida seguimos como um automóvel, que ora queima um fusível, fura um pneu, amassa a lataria, pede a troca de uma rebimboca da parafuseta,  ganha um risco na pintura... Da mesma forma, o meu músculo da vista tem andado um tanto cansadinho de tanto abuso.

Mas então, fui hoje à ótica e lá o vendedor me explicou que as lentes Zeiss são alemãs e "as melhores do mercado" (quem é fotógrafo conhece). Quando ouvi este preâmbulo, instintivamente levei minhas mãos aos bolsos, como que para proteger a carteira do que estava por vir. O atencioso funcionário da ótica prosseguiu, e explicou-me didaticamente sobre campos focais, índices de refração e ainda um monte coisas que eu me lembro de haver colado numa prova de física lá pelo ano de 1985. Completou dizendo com pompa e cerimônia que há dois anos as lentes Zeiss começaram a ser produzidas através de um sistema digital laser duplo carpado Daiane dos Santos e tal. Coisa de primeiro mundo, o mundo da Angela Merkel. 

Meia hora antes de entabular esta conversa técnica, eu estava circulando animado pela loja a colocar no rosto todo tipo de armação que havia nos mostruários das paredes. Uma delas, de formato circular, causou-me profundo estranhamento por ter me deixado um tanto parecido demais com o Steve Jobs. Descartei-a de imediato.

Quando a gente é formado em design acaba ficando meio besta e com o alarme permanentemente ligado contra todas as sutis nuances da feiúra e dos projetos ruins. Isso nos acarreta alguns problemas. O primeiro deles é o fosso que se cria entre o almejado e o possível (bom design X bom preço). A regra vale até para simples armações de óculos.

Geralmente descarto 90% das armações que vejo em óticas  Qualquer excesso no design, qualquer logotipo grande demais, qualquer douradinho e firula onde a forma não segue a função, me incomodam. 
Finalmente, quando encontro aquela armação interessante e bem projetada, ela traz consigo uma etiqueta de preço  pra lá de desagradável e nomes que mais se parecem com os de famílias nobres européias: Rodenstock, Pininfarina, Balenciaga, Armani, Azzaro... (e é claro que nunca tocarei numa armação Ana Hickman!)

Pois bem meus caros 7 leitores, esta embromação toda foi pra desabafar e compartilhar com vocês a notícia de que somente a lente multifocal dos meus novos óculos - aquele par de vidrinhos ovais feitos pelo robozinho que fala a língua de Goëthe - me custará uma pequena fortuna. Some-se a isto o preço daquela armação de resina polida por Leprechauns da Bavária e você tem um cliente que, para fazer sua encomenda mais do que necessária, teve que deixar seus olhos míopes sobre o balcão da loja.

5.8.12

O próprio Padim Ciço batizou

Este ano estive em Juazeiro do Norte, no Ceará, a convite da Universidade Federal do Cariri (conto depois como foi a oficina do Diário Gráfico por lá).
Aproveitei a ocasião para conhecer as tradições locais, em especial a meca dos devotos do Padre Cícero.  Resolvi então subir a pé uma longa ladeira que serpenteia pelo morro até o Memorial do Padim Ciço, onde há uma estátua gigante do homem. 
Já bem alto na ladeira encontrei uma velha senhora tomando um solzinho na porta de casa. Parei para descansar e aproveitei para bater um papo enquanto fazia uns desenhos e batia umas fotos com meu celular.  Uma bisneta contou que ela estava se curando de uma pneumonia, e nada melhor do que o sol da manhã e um suquinho de acerola.
A velha tinha a risada mais maravilhosa desse mundo, sonora e divertida, e também adornada por apenas um par de dentes. Contou-me que foi batizada pelo próprio padrinho (e eu fiquei a pensar se todas por ali diziam a mesma coisa para os turistas...)
De volta ao estúdio em Niterói (RJ), fiz uma aquarela a partir de uma das fotos daquele encontro. 
PS.: Agora me recordo que prometi enviar uma cópia para a família! Antes tarde do que nunca, vai pelo correio na segunda-feira. 
Com ar novo para encarar a parte final da ladeira ao Memorial do Padim, despedi-me da vovozinha e da família, que aprovou os croquis do meu sketchbook. 
"Vovó está quase cega, moço", disseram-me, "não vai poder ver como seu desenho ficou".


2.8.12

Seeing is believing


Às vezes desenhamos o que vemos. Em outras, desenhamos o que sabemos.
No intervalo entre as duas coisas é que acontece o imponderável, o imprevisível, o improvável.