8.3.07

ABC Judaico


A ilustração acima foi criada para o livro ABC Judaico, escrito por Moacyr Scliar. Este projeto para a Edições SM se juntará aos títulos "ABC Árabe" e "ABC Africano". Uma grande idéia!
A letra "W" deste ABC judaico fala de Elie Wiesel, escritor judeu nascido na Romênia e sobrevivente dos campos de exterminio, para onde foi levado aos 15 anos de idade. Wiesel escreveu mais de 40 livros (dentre eles "Noite") e em 1986 ganhou o prêmio Nobel da paz. Foi um defensor não somente de Israel, mas também abraçou a causa dos desaparecidos durante a ditadura militar na Argentina, os refugiados do Cambodja e as vítimas do apartheid na África do Sul.
Este projeto sem dúvida é dos mais apaixonantes com os quais estive envolvido.
Para conhecer o site do Moacyr Scliar, clique no título da mensagem. Lá chegando, clique em "Moacyr" para conhecer um pouco sobre este grande escritor.

1.3.07

Ah, os sebos...


Quando passo em frente a um sebo é sempre a mesma coisa, vem uma voz de não sei onde, que logo me diz:
- Entra vai, entra! Tem um livro órfão te esperando em uma daquelas prateleiras empoeiradas!
Uma segunda voz, em contrapartida, tenta controlar aquele impulso que já me domina.
- Mas, outro livro? Quantas vidas você espera viver para ler todos os livros que tem?

Meu livro mais recente me encontrou assim...

Estava eu andando pelas ruas do centro do Rio à procura de um sobrado onde um sujeito vendia uns móveis, gravuras e mapas antigos. Uma perna e depois a outra, e eu procurava o tal lugar enquanto derretia-me sob o verãozão solar e carioca.
-Onde fica a Rua dos inválidos?
A pergunta foi feita a um flanelinha que encontrei, uns 350 quilômetros atrás.
A camisa já era uma segunda pele, viscosa e desconfortável.
Camelôs, popozudas, banguelas, taxistas cafonas, mendigos putrefatos, putas véias e malandros tornavam pitoresca a paisagem da praça Tiradentes. A arquitetura centenária e muito bela abriga lojas de ferragens, botequins decadentes e sapatarias de gosto duvidoso. Ruas que fedem a mijo, fumaça e amendoim torradinho.
-Qualquer dia desses venho desenhar por aqui...
Ao passar em frente a um sebo, umas vozes internas bastante familiares começaram a se manifestar. De um lado vinha a bibliófila, e do outro, a prática e necessária voz da consciência anti-consumista, a castradora, a irritante, a racional, e por tantos adjetivos ganhou um peteleco e caiu do meu ombro.
-Entra vai, entra! Tem um livro órfão lá dentro..."
"Ô chefe, onde ficam os livros de arte?", perguntei.
O sujeito, rosto de mapa embaçado, apontou uma estante que ia até o teto.
Olhei por meia hora e nada. Nada além do básico de sempre: uns catálogos de leilões, um ou outro livro PB sobre os impressionistas, histórias da arte (publicados na década de 60...) etc.
Acredito piamente que, quando estamos nos sebos são os livros que nos encontram, e não o contrário. Esse é um puta clichezão mas repleto de verdade.
O tempo estava mesmo muito quente naquela loja empoeirada e talvez os livros estivessem cochilando pois senti-me ignorado. Retornei então ao meu caminho em busca do tal sobrado do antiquário, motivo da minha vinda para o inferno que é o centro do Rio. Apesar do calor, dos cheiros e dos muitos ruídos, sentia-me ligeiramente leve por não ter cedido mais uma vez aos meus impulsos bibliófilos (e também por ter feito uma economiazinha).
"Putaquipariu, essa Rua dos Inválidos é longe pa carai...", limpei a espuminha dos cantos da boca com a gola da camisa. O ar estava repleto de sons de carnaval que explodiam das lojas de discos, todas breguíssimas.
"Chato pra cacete esse estado de euforia a troco de nada", meus pés reclamavam.
Outro sebo. Fui pegar informação com aquele tiozinho sentado na cadeira à porta.
"Ô chefe, onde fica a rua dos... Bacana esse teu sebo hem? Organizadinho, limpinho... Eh, onde ficam os livros de arte?
A loja era bem grande, porém incrivelmente estreita. Entrei e fui logo browsear as lombadas na prateleira "Artes". Havia pouca coisa lá do meu interesse, talvez um livro de logotipos do Ziraldo, uns sobre o Aleijadinho, mas no geral o que havia era o PF básico das traças. Fui passeando por entre as estantes até que, de longe, uma capa amarela me chamou atenção. Na prateleira onde ela estava havia uma tarja onde se lia "Culinária".
Curioso me aproximei. Dizia em letras explodidas: "Manga! Manga! The Art of The japanese Comic Books".
Acho que algum funcionário do sebo leu "Manga" na capa e imaginou tratar-se de um livro de receitas com aquela fruta! Voltei para a prateleira das artes.
Pois então, outra meia hora ia sendo jogada fora quando, já a caminho da porta, parei em frente à estante que ostentava a etiqueta "Poesia". Deu até vontade de arrancar aquela etiqueta e colar no meu sketchbook.
"Quem sabe acho uma Clarisse Lispector, um Dylan Thomas, um Nerudazinho..." matutei enquanto aguçava os ouvidos para ver se algum daqueles livros iria me sussurrar um pedido de socorro.
E eis que meus olhos caíram sobre uma grossa lombada adornada com uma tipografia feita à mão: "Edgar Alan Poe's Tales of Mystery and imagination".
"Aham...", peguei a obra com carinho. Era um fac-símile de uma edição inglesa de 1936. Em bom estado e com várias ilustrações de Arthur Rackham, umas em PB, outras em cores, o volume estava ligeiramente amarelado, mas era uma belezura. Rackham é um dos meus ilustradores favoritos, mestre vitoriano do gênero fantástico, um bico de pena fenomenal. O livro, que agora já estava bem acolhido em minhas mãos possessivas, havia sido impresso na Hungria em 1986. A primeira página trazia o preço a lápis: 65 reais.
"Hum...podia ser menos" fiz as contas. "Ô tio, gostei desse livro. Pago quarentão nele."
"48", Disse o velho do balcão.
O meu limite era 40, sem margem para esticar nem um centavo.
"Hum...vou dar uma volta e depois passo aqui...", disse já a caminho da porta, onde completei minha frase, malandramente, "... o senhor sabe que o freguês que diz isso nunca volta né?"
- "45", falou o velho.
"vou dar uma olhada um pouco mais no que mais o senhor tem por aqui, e enquanto isso penso no assunto", sorri como um astuto mercador persa, e fui percorrer as lombadas distraidamente por uns longos minutos. Quase podia agarrar no ar a expectativa do velho, que já estava de pé nos fundos do sebo, soltando uma fina caraminhola de fumaça enquanto fingia organizar sua mesa.
Quando eu já estava chegando na última estante, dramaticamente posicionada junto aos ferrolhos da porta de correr, o velho me chamou de volta.
Claro, o livro de Poe deixou a loja feliz da vida, pois finalmente havia encontrado um dono.